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05 novembro 2006

Shisha Pangma, o Inferno !


João Garcia in Record DEZ

ESTA NÃO É UMA CRÓNICA fácil, trata-se da crónica de uma vitória com sabor amargo. Nesta altura, quando era suposto termos atingido o nosso objectivo e regressarmos em segurança, não posso dizer que a expedição foi bem sucedida.
Para que todos possamos perceber em que condições se faz alpinismo aos 8.000 metros, é preciso dizer que se trata de um desafio muito físico, no qual só respiramos 33% do oxigénio que normalmente respiraríamos se estivéssemos ao nível médio das águas do mar.
Aqui, a cada passada respiramos quatro vezes. E ao fim de quatro ou cinco horas de caminhada é normal que nos comecemos a distanciar uns dos outros. Se nas maratonas, em pouco mais de duas horas, os atletas registam grandes diferenças uns dos outros, imagine-se o que acontece aqui, onde nós levámos dez horas a ir dos 7.000 metros aos 8.046 do cume do Shisha Pang-ma. Como não somos clones uns dos outros, é normal que cada um tenha o seu ritmo.

NINGUÉM PODE PARAR. Sujeitos a temperaturas de 30 graus negativos, temos consciência de que os fatos não produzem calor, apenas o conservam. Se abrandarmos o ritmo ou pararmos, podemos congelar e morrer. Aqui, não se vive, sobrevive-se. Todos estávamos conscientes do que íamos fazer, somos maiores de 30 anos, inteligentes, e tínhamos um acordo: se ao fim de 12 horas não tivéssemos chegado ao cume, por razões de segurança, dávamos meia-volta e regressávamos. Porque começamos a ter falta de oxigénio no cérebro aos 8.000 metros, o plano tem de ser feito cá em baixo.



O BRUNO CARVALHO obedeceu ao plano, estava dentro dos "timings" definidos, mas foi vítima de um trágico acidente, infelizmente, já não está entre nós. Agora, temos de amortecer a dor da família. O que me custa é que a partir da dor queiram montar um circo sem sentido. É uma tristeza que algumas pessoas falem de coisas que não conhecem. Eu não sou médico, por isso nunca me ouvirão falar de medicina. Em Portugal, infelizmente, há quem goste de falar sem saber.

NESTE MOMENTO, não temos capacidade para recuperar o corpo. Ao pai do Bruno prometi que ia fazer tudo o que fosse possível, contactei os operacionais chineses e a operação de resgate foi posta em marcha, mas é uma coisa que já não domino, é oficial, depende das autoridades da China, da embaixada portuguesa e também da seguradora espanhola. Porém, nada está garantido. Os helicópteros não vão acima dos 5.000 metros, por causa da densidade do ar, e os "sherpas", mesmo habituados a viver nos 4.000 metros, vão precisar de se aclimatar. Precisarão de dois dias para irem do campo base aos 6.000 metros, e mais dois para irem aos 7.000. Não será fácil, mesmo com q recurso ao oxigénio. Uma coisa é os alpinistas irem lá acima porque querem, outra é obrigar alguém ir resgatar um corpo.

O BRUNO TINHA ainda duas horas de margem de segurança, o acidente não se tratou de negligência. Avertente de 300 metros onde ele caiu era pouco inclinada, não sei o que poderá ter sucedido. Talvez fadiga. Mesmo quando paramos, os batimentos do coração são de 160 a 180 por minuto, não sei, houve qualquer coisa. Nós queremos sempre ir mais alto, e quanto mais alto vamos mais a fasquia do risco sobe.

ELE É UM LUTADOR. Lutou tanto como nós, mas teve azar. Não gosto de usar esta expressão, mas aqui foi o que aconteceu, foi azar. O Bruno estava a 400 metros das tendas, onde nós já derretíamos neve, para nos hidratarmos. Levámos dez horas a subir e quatro a descer, não era suposto ter acontecido esta tragédia. O que deveria ter acontecido era o nosso regresso em segurança.


João Garcia e o sherpa Nurô no topo do Shisha Pangma

No dia 02 de Novembro Aurélio Faria escreveu:

“Campo base, campo base… aqui Rosado! O Bruno morreu ontem à tarde – repito - o Bruno morreu ontem, na descida!”
A comunicação rádio, às 10 da manhã (1 Novembro) caiu que nem “uma bomba”! De repente, deixava de fazer sentido o facto de três portugueses terem atingido o cume do Shisha Pangma na véspera. A informação estava ainda bloqueada, até ter a certeza que estavam todos em segurança no Acampamento 2 avançado. A luz do dia trouxe a confirmação da glória, mas também de uma tragédia.

Aos 7 mil metros, por volta das quatro da tarde, ainda com três horas de luz, Bruno Carvalho deu uma queda fatal, a 400 metros do sítio onde ia passar a noite.
Bruno era o último do grupo, de três portugueses e um nepalês, que tinha atingido horas antes o cume de 8013 metros; tal como na progressão para o cume, vinha, no regresso, ao seu próprio ritmo, com atraso de hora, hora e meia, atrás dos outros…
Estranhando a demora, João, Rui e o sherpa Nurô que preparavam já chá para Bruno, saíram da tenda, foram encontrar o corpo do companheiro de expedição, já sem vida, vítima de uma queda, que ninguém consegue ainda explicar.

Em estado de choque, numa noite de vento e muito frio, extenuados por 24 horas de esforço contínuo, a 7 mil metros, onde há 30 por cento do oxigénio, nenhum dos três teve capacidade física para resgatar o corpo, levá-lo até ao acampamento base.
“Tentei dignificar dentro do possível o corpo de Bruno, sinalizei o local improvisado da sepultura, até que seja possível organizar, com sucesso, uma operação de resgate.” João Garcia, líder desta primeira expedição portuguesa a um cume de 8 mil metros ainda não tem palavras para o que aconteceu…

“Ele era a alma de qualquer expedição!” – no acampamento base avançado, as recordações do amigo Bruno marcam a memória de uma aventura, que devia ter acabado em glória, e não em tragédia.


A equipa dos cinco portugueses

No dia 31 de Outubro tinha relatado :
...Ao nascer do dia, o resto do grupo cumpria o planeado, estava já a meio do caminho, como se podia observar do óculo montado no acampamento-base avançado. “Estão a ir bem, muito bem…”
À porta da tenda-cozinha, o cozinheiro Rinji e o ajudante Dordje seguiram toda a manhã, à distância, a progressão, pouco técnica, mas muito lenta, devido ao esforço em altitude até ao cume principal do Shisha Pangma.
João e o sherpa Nurô, logo seguidos por Rui Rosado, foram abrindo trilho em neve rija, ao princípio, mole a meio do percurso, para voltar a ser rija, já no final, antes do cume. “Aqui Bruno, estou um pouco para trás… talvez uma hora atrás deles, mas continuo a progressão…” – a comunicação rádio das dez da manhã nem precisava de confirmação. Cá em baixo, era possível seguir a olho nu o atraso de Bruno. “Segues para cima?” “Sim, claro, “wish me luck!”
… João, Nurô e Rui atingiram o cume por volta das 11 e meia da manhã. Algum vento de sudoeste à chegada, conforme as previsões… 15 minutos esteve o trio na montanha que os antigos chamavam de Trono dos Deuses, tempo para registar o momento para a posteridade, iniciar de imediato a descida…
Para João, este foi o oitavo cume de oito mil metros, a continuação do projecto “À conquista dos Picos do Mundo”, que tem como objectivo pisar o topo das 14 montanhas mais altas do Mundo. Com o Shisha Pangma, Rui Rosado estreou-se a tão alta altitude, tornou-se o quarto “oitomilista” português.



Na descida, a uma hora do cume, os dois cruzaram-se com Bruno, tentaram demovê-lo, em vão, a voltar para baixo com eles: “Está feito, vamos embora…” “Olha que ainda estás longe… já sabes, uma da tarde, cume ou não cume, volta para trás…” – foram os conselhos de João e Rui… “Nem pensar, se já cheguei até aqui…” – foram as últimas palavras que ouviram em vida ao companheiro de expedição… o chamamento da montanha terá sido mais forte…
Aurélio Faria in http://sic.sapo.pt/online/blogs/shishapangma